Cultura

Uma crônica autobiográfica – por Claudia Durán

Recém-separada, buscando emprego e para manter a saúde mental e a criatividade me inscrevi numa oficina da escrita.

Uma turma bem heterogênea, entrosada que ia do enfermeiro ao estudante de filosofia e que rendeu uma produção de textos bons com direito a publicação. Todos queriam aprimorar a escrita, estimular a criatividade ou simplesmente encarar aquelas aulas como uma terapia.

Afinal, escrever é se desafiar. É encarar a tela e/ou papel em branco e não criar expectativa se os outros vão gostar ou não. Apenas deixar-se levar pelas palavras e confiar em si.

Num destes desafios escrevi a crônica abaixo, inspirada na conversa que tive com um dos meus colegas de turma. Boa leitura!

Senhorita Warhol

Terça-feira à noite, a semana mal tinha começado. Ela caminhava de volta para a casa quando algumas palavras surpreendentes lhe fizeram olhar para trás: “Senhorita Warhol, você é uma das poucas pessoas que eu conheço que escreve com entusiasmo. Eu precisava lhe dizer isto!” 

Ela sorriu. Achou engraçado ser chamada de senhorita a beira dos quarenta, e com um sobrenome que traduz uma época revolucionária. Apesar de estar às portas da maturidade, ela ainda passava por revoluções e inquietações, muitas vezes adolescentes. 

O rapaz, à primeira vista, tinha um jeitão que mistura bicho-grilo com devorador de livros. Suas palavras tinham muita poesia. Ora elas eram cortantes, ora melancólicas. Quando ela o escutava na sala de aula recitando seus textos, em sua mente,  formava-se a imagem daqueles poetas sombrios do século XIX, que purgavam a angústia no papel à luz de velas. 

O mais surpreendente para ela foi descobrir que ele tinha apenas dezoito anos.

Num primeiro momento, a imagem séria e sua maneira de pensar pareciam que não combinavam com quem ainda estava na adolescência, saindo da casca.

A medida que a conversa despretensiosa fluía, os óculos que ele usava não conseguiam esconder a inquietação sadia do seu olhar quando perguntava para aquela mulher sobre suas leituras.

Ela conhecia de nome os autores que ele falava, mas nunca os leu: Salinger, Kerouac, Burroughs, geração beatnik . Naquela hora bateu aquela vergonha da sua lacuna cultural. Ela se arrependia de não ter lido mais, estudado mais, se interessado mais, tudo passava pela sua mente como um filme acelerado. 

Houve um tempo em que a Senhorita Warhol queria competir com o relógio. Ela queria ler, conhecer, compreender, aprender tudo ao mesmo tempo e agora. Nessa época ela ainda não se conformava muito de que o tempo é implacável, não perdoa e o que é pior, não para. 

Não dava para voltar atrás e refazer tudo de novo. Hoje ela está convencida de que não precisa devorar tudo de uma vez, ela quer saborear de tudo um pouco, com calma.

Uma calma, que a Senhorita Warhol está readquirindo. Houve um tempo em que essa aquariana de fevereiro de 1964, nascida num sábado de carnaval, às portas do golpe militar, queria abraçar o mundo de uma vez só, agir como um furacão ao som de Led Zeppelin e Cássia Eller. Parecia uma personagem vinda da década de 60, quem sabe até amiga de Andy Warhol.

Como aquela jovem senhora podia ter tanta fúria dentro dela se as pessoas a tinham como uma pessoa doce ? À sua volta os pedidos de paciência e calma foram em vão e a Senhorita Warhol saiu para fazer suas conquistas.

Ela não queria conquistas monumentais, apenas queria se sentir dona de sua vida e não apenas espectadora dela, ou deixando que a vida a levasse.

O jovem companheiro, da breve jornada literária, ressaltou o entusiasmo que as palavras dela traduziam. Isso a deixou muito feliz. Muitas vezes, a Senhorita Warhol não levava muita fé na sua sensibilidade, no encanto que as suas palavras podiam produzir. 

Entusiasmo, uma boa palavra – ela pensou. Dez letras que traduzem ardor, arrebatamento e indo um pouquinho mais longe com o dicionário: alegria, paixão. Essa última, às vezes faz um estrago na vida da Senhorita Warhol. Mas ela não se importa muito com os tombos e arranhões que vai ganhando ao longo do caminho, afinal ela ainda é uma apaixonada entusiasmadamente incurável.

Foto: Moskow

Revista Ecos da Paz

Viver em harmonia é possível quando abrimos o coração e a mente para empatia e o amor.

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