A partir de uma indagação de um leitor seu, Rubem Alves discorre sobre a tal felicidade. Sentimento, conceito, sensação perseguida pela humanidade desde sempre.
E quando se trata desta sociedade calcada no consumo, a felicidade ganha forma nos mais diversos objetos e prazeres, do mais simples ao mais caro e sofisticado.
Entra-se no piloto automático para manter o “padrão de felicidade”, mas já se perguntou o que te faz feliz? Já deixou de lado a ansiedade de pensar no futuro e viver o presente?
O QUE É UMA PESSOA FELIZ?
QUANDO LI A PERGUNTA de certo leitor, pensei: “Essa é fácil”. Ele já me havia enviado duas cabeludas, cujas respostas inevitavelmente iriam fazer algumas pessoas franzir a testa em desaprovação. Esta, “o que considero uma pessoa feliz?”, é fácil. Afinal de contas, sou um psicanalista; devo ter conhecimento especializado sobre o assunto. Mas bastou que eu parasse para pensar e descobri que ela é, talvez, a pergunta mais difícil que pode ser feita.
Posso responder à pergunta de maneira geral e abstrata: uma pessoa é feliz quando faz o que lhe dá prazer e quando vive uma relação de amor-amizade com alguém. Essa definição, verdadeira, nunca se realiza. A gente não está nunca fazendo só o que gosta.
A vida nos obriga a fazer muitas coisas desagradáveis, a engolir sapos. Eu mesmo tenho, em meu estômago, vários sapos vivos, não digeridos, que continuam a mexer e a coaxar. Além disso, essa relação acontece em momentos ou períodos curtos.
Ela é logo interrompida por uma série de fatores indesejáveis que nos tornam intolerantes, irritadiços, rabugentos, distantes. Essa transformação aparece na mudança da música da fala.
Felicidade mesmo, ser feliz como estado permanente, não existe. Acontece em raros momentos de distração (Guimarães Rosa).
Mas eu sei de duas condições sem as quais esses raros “momentos de distração” — são eles que dão sentido a vida — não podem acontecer.
Primeiro, é preciso que a gente tenha alegria no que está fazendo. Quando a gente tem alegria no que está fazendo, a gente faria a coisa mesmo que não ganhasse nada. O fazer dá prazer.
Rubinstein, pianista maravilhoso, tinha 20 anos de idade, quando sua certidão de nascimento indicava 85. Entrevistado, disse brincando ao seu entrevistador: “Não conte ao meu empresário. Eu seria capaz de pagar para tocar piano…”. Para ele o seu trabalho era um brinquedo.
Babette cozinhava não pelo salário. Cozinhava porque isso lhe dava alegria. Até gastou um prêmio de loteria para dar um banquete…
Mas há uns trabalhos que a gente faz não pela alegria que o trabalho dá, mas por causa do produto final. Uma pessoa que trabalhe por causa do dinheiro que vai ganhar é o exemplo típico.
Para tal pessoa o que importa não é o que ela está fazendo, se é marcenaria, construção, vender drogas, advogar, fabricar colchões ou chicletes. Ela trocaria prazerosamente o que está fazendo por outra atividade totalmente diferente, desde que a outra lhe desse mais dinheiro.
Melhor seria se ela ganhasse na loto — R$ 40.000.000,00 — para não precisar mais trabalhar pelo resto da vida. Para tais pessoas o trabalho não é brinquedo; é trabalho forçado. Elas não sabem que o preço dessa inatividade rica é o tédio. Estão condenadas à infelicidade. Sobre isso leia os Manuscritos econômicos – filosóficos de Marx, de 1844.
Segundo, é preciso que a gente ame e seja amado. Amar e ser amado é isso: pensar numa pessoa ausente e sorrir. Ficar feliz sabendo que ela vai voltar. Ter alguém que escute e dê colo, sem dar conselhos.
Andar de mãos dadas conversando abobrinhas. Olhar nos olhos da pessoa e sentir que ela está dizendo: “Como é bom que você existe!” Jogar frescobol com ela. Ser, simplesmente, sem pensar que há um par de olhos nos vigiando para nos cobrar algo. Conversar madrugada afora, sem pensar em sexo.
Guimarães Rosa disse mais ou menos o seguinte: “A coisa não está nem na partida e nem na chegada. Está é na travessia”.
A felicidade não acontece no final, depois da transa, depois do casamento, depois do filho, depois da formatura, depois de construída a casa, depois da riqueza, depois da viagem. A felicidade acontece no dia a dia. Felicidade é fruto na beira do abismo. É preciso colhê-lo e degustá-lo agora. Amanhã, ou ele já caiu, ou você já caiu…
Rubem Alves, crônica “O que é uma pessoa feliz?”do livro “A grande arte de ser feliz”. Rio de Janeiro: Editora Planeta, 2014
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