Muito antes da pandemia de Covid-19, o economista francês Thomas Piketty tem analisado as profundas divisões que permeiam nossas sociedades ocidentais.
Autor dos livros “O Capital no século XXI, publicado em 2014, em que um dos seus tópicos reflete sobre proposições para um ajustamento distributivo e “Capital e ideologia” (2019), que traça a história das desigualdades, não apenas no Ocidente.
Neste livro, Piketty apresenta propostas para redistribuir a riqueza, como uma herança para todos, a cogestão das empresas, a propriedade temporária, um imposto sobre os rendimentos mais altos até 90%.
Thomas Piketty também é professor na Escola de Economia de Paris e deu uma entrevista para Anais Ginori, publicada no jornal italiano La Repubblica, em 07/06/2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que mais lhe impressiona na situação atual?
Nos últimos dez anos, celebramos os trabalhadores independentes, os jovens das start-ups, o pessoal do NIF (número de identificação fiscal). Hoje percebemos que muitas dessas pessoas tiveram que continuar trabalhando durante o lockdown porque não tinham outra forma de renda. E na crise econômica que está começando, eles serão os mais atingidos. A outra coisa a notar é que os Estados se endividam para responder à emergência, o que é completamente natural, mas não falam tudo.
Ou seja?
Após a primeira e a segunda guerra mundial, as dívidas públicas subiram para 200, até 300% do PIB. Aconteceu na Alemanha, Japão, França. Estamos caminhando para cenários similares. Não é algo novo nem preocupante por si só, porque existem soluções. O importante é dizer a verdade: no final, alguém terá que pagar. A dívida pública não desaparece como se fosse por milagre.
Quem, em sua opinião, deveria pagar?
É a pergunta fundamental a que muitos governos fogem. Seria bom pensar que ninguém terá que fazer sacrifícios no final. Não é verdade. Se olharmos para as crises do passado, existem duas hipóteses. A inflação pode ser criada, o que significa que quem pagará serão as classes mais pobres e os pequenos poupadores. Ou se pode fazer contribuir as pessoas com rendas mais altas e patrimônios através de alíquotas progressivas. Em muitos países da Europa, já existe uma maioria de cidadãos a favor de um imposto sobre o patrimônio. Os governos agora não querem falar sobre isso, mas serão forçados a fazê-lo nos próximos meses.
Uma crise como a que estamos enfrentando tem precedentes históricos?
No livro, lembro do debate sobre as consequências da Grande Peste que, segundo alguns medievalistas, haviam permitido reduzir as desigualdades e até a servidão. Para outros estudiosos, o que aconteceu foi o contrário. Na Europa, especialmente na parte oriental, a servidão se fortaleceu porque as classes dominantes, clero e nobres, quiseram recuperar o que foi perdido durante a epidemia. É o que poderia acontecer hoje.
O mundo pós-covid será ainda mais injusto socialmente?
As crises, como tais, não têm uma saída política específica, depende sempre de qual narrativa assume a melhor. A Covid não nos permitirá superar as relações de poder entre dominantes e dominados nem reverter a tendência que vem ocorrendo desde os anos 1980. Se realmente queremos entrar em um novo mundo, precisamos desconstruir a ideologia de nossos regimes embasados na desigualdade.
Os governos conseguiram parar a economia para salvar vidas humanas. Você esperava isso?
Foi justo fazê-lo diante de uma ameaça sanitária, mas agora vamos usar a mesma flexibilidade mental para olhar para os desafios ecológicos e sociais. Os primeiros sinais não são animadores. A prioridade parece ser recomeçar como antes.
O Recovery Fund proposto pela Comissão Europeia é um bom sinal?
É melhor que nada, mas continuamos presos a um sistema de governo europeu opaco, vinculado à regra da unanimidade entre 27 governos que tornará atribulado o caminho da aprovação da proposta da Comissão. E quando houver o Recovery Fund, um único governo poderá colocar o veto sobre o que pedirão para fazer Itália, Espanha ou qualquer outro país europeu.
Você está se referindo à resistência dos países “frugais”?
Vamos parar de tentar convencê-los. Vamos seguir em frente com um grupo de países voluntários. Na França, Itália, Alemanha e Espanha já existe uma maioria política para apoiar investimentos conjuntos com atenção ao meio ambiente e às desigualdades sociais. Ao contrário do que muitos dizem, receio que, a médio prazo, o mecanismo institucional do Recovery Fund não resolva o divórcio que existe entre muitos cidadãos e a Europa. Pelo contrário, o fortalecerá porque avança sobre uma única perna, a das despesas orçamentárias. E esquece outra, a dos rendimentos, ou seja, da receita fiscal.
A Itália será o país que mais se beneficia do Recovery Fund.
Poderia ser um entusiasmo efêmero aquele da Itália. Nos últimos anos, tivemos muitos conselhos europeus que teoricamente salvaram a Europa. Enquanto isso, houve o Brexit, a ascensão dos nacionalismos, e o projeto europeu perdeu definitivamente a adesão dos eleitores das classes médio-baixas.
O desafio ecológico, para o qual muitos jovens se mobilizaram, será esquecido pelos governos?
Seria um verdadeiro erro subsidiar apenas atividades de altas emissões de CO2. Setores como o automobilístico ou têxtil terão que reduzir sua parcela de atividade gradualmente, mas de forma decisiva. Se não aproveitarmos esta oportunidade para reajustar nossas prioridades, quando o faremos? Novos empregos também podem ser criados com as medidas para o isolamento térmico, o desenvolvimento de energias renováveis. Proponho no livro um imposto progressivo sobre as emissões de CO2, concentradas principalmente por sujeitos com alta renda e altos patrimônios nos países mais ricos.
Fonte: La Repubblica
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