Sociedade e cidadania

O resgate da história ajudando na criação de referências e de identidades

Mesmo com a implementação da lei 10.639 que trata da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas, pouco se fala sobre as grandes personagens femininas negras como as baianas Maria Felipa de Oliveira e Maria Quitéria que empunharam armas, arriscaram suas vidas em prol de um ideal maior: a independência do Brasil. Assim como os motoristas que cruzam o túnel Rebouças na cidade do Rio de Janeiro, que liga a zona norte à zona sul do município, desconhecem que este nome foi dado em homenagem aos irmãos Rebouças, também baianos, que foram os primeiros engenheiros negros do século XIX. Eles se especializaram em abrir estradas e seus projetos foram de suma importância para as cidades de Curitiba e Rio de Janeiro.
Na literatura, o cenário não seria muito diferente. Em 2019, Machado de Assis, primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, ganhou um retrato mais fiel da sua aparência, que durante anos passou por um embranquecimento. Se em pleno século XXI vemos cenas de racismo explícito no Brasil, imaginem se seria possível retratar como negro um dos maiores escritores brasileiros ao final do século XIX! Contudo, o Movimento Machado de Assis Real, uma parceria da Faculdade Zumbi dos Palmares com a Agência Grey Brasil, fizeram um site para que os internautas baixem o “verdadeiro” Machado de Assis. Para Adriano Matos, chefe criativo da agência, o projeto não é apenas para corrigir o passado, mas mudar o futuro.

Uma abolicionista num engenho

Uma história surpreendente é a de Maria Firmina dos Reis. Maranhense da Ilha de São Luís aliava seu trabalho de professora com o de escritora e em 1859 publicou “Úrsula”, considerado o primeiro romance de uma autora negra no Brasil.

Aos 54 anos de idade e com 34 de magistério, Maria Firmina fundou, em Maçaricó, a poucos quilômetros de Guimarães, uma escola gratuita e mista para meninos e meninas pobres. Conduzia as aulas num barracão em propriedade de um senhor de engenho, à qual se dirigia toda manhã subindo num carro de boi. Uma proposta pra lá de ousada para época.

Participou ativamente da vida cultural e intelectual maranhense com seus livros, antologias e até com composições próprias. Na época em que foi nomeada professora, sua mãe sugeriu que ela fosse de palanquin, uma espécie de cadeira carregada por escravos, mas Maria Firmina decidiu ir a pé dizendo que negro não é animal para ser montado e chegou a escrever o Hino da Abolição dos Escravos.

Morreu aos 92 anos pobre, cega e sem reconhecimento algum, somente muito tempo depois se tornou a única mulher a ganhar um busto na praça Pantheon ao lado dos escritores maranhenses na cidade de São Luís.

Guerreiras esquecidas e princesas empoderadas

Durante o período escolar, a abordagem sobre o período da escravidão sequer ouvirmos falar das líderes quilombolas que lutaram e realizaram grandes feitos no Brasil, nem mesmo na academia. Somente através de pesquisadoras e escritoras como Jarid Arraes que ouvimos falar de Antonieta de Barros, que foi a primeira deputada negra no Brasil. Partindo da premissa de colocar as mulheres no seu devido lugar de destaque na nossa história, Jarid criou 10 livretos de cordel contando as trajetórias e conquistas delas.
Nesses cordéis é possível conhecer Zeferina, líder do quilombo de Urubu, Anastácia, uma escrava que até hoje é cultuada como santa. Ela acrescenta que corrigir estas injustiças através do cordel pode servir como um rico material para que essas histórias sejam repassadas e discutidas.

Foi por causa da filha que a professora Sinara Rúbia resolveu criar a princesa Alafiá. Esta personagem ganhou corpo durante a elaboração da monografia de Sinara no curso de letras, na Universidade Estácio de Sá (Unesa), em Petrópolis (RJ), depois virou conto e um livro que traz histórias da guerreira quilombola.

Professora Sinara Rúbia com seu livro. Foto: Reprodução

Alafiá foi imaginada em 2003, quando ela se preocupava com a construção da identidade da filha, uma menina negra que crescia e precisava ter referências tanto em filmes, como nas bonecas e em narrativas e ela se deparou com a escassez deste tipo de material. Tinha diante de si a ausência de personagens negros com referenciais positivos e saudáveis. Quando tinha, eram sempre estereotipados e narrados de uma outra forma a partir do racismo, disse.

Esta história traz os elementos imprescindíveis dos contos de fadas como aventura e par romântico, só que nesta narrativa a princesa é negra, que foi escravizada, se tornou guerreira e quilombola, que resistiu à escravidão com resiliência. Na questão do amor não é o homem que resolve todos os problemas e leva ela para viver submersa em um castelo. É uma princesa que casa e se apaixona pelo chefe do quilombo, inspirada na trajetória das mulheres negras do Brasil.

A publicação deste livro foi uma maneira que Sinara encontrou de ampliar o alcance da princesa Alafiá, que até o momento estava restrita à contação de histórias. Foi uma oportunidade de aumentar a abrangência desta proposta que fala da mulher, suas lutas, conquistas e força, da história do Brasil e da história do negro por uma outra perspectiva.

Fonte: Universa.

Revista Ecos da Paz

Viver em harmonia é possível quando abrimos o coração e a mente para empatia e o amor.

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