Neste texto, Eliane Brum destaca alguns personagens que observou e nos faz pensar na solidão impregnada nos asilos. Pessoas agrupadas que não criam laços e apenas esperam a morte chegar.
Elas vivem uma ao lado da outra. Uma em cada cama. Duas ilhas que não se tocam. Há algum tempo Vany nem mesmo enxerga Celina.
A artrite que lhe devora as articulações não permite que mova o pescoço para a esquerda. Celina vislumbra o perfil de Vany, mas tem o olhar eclipsado pela janela da rua. Duas mulheres em uma geriatria. Exiladas.
Duas náufragas que decidiram expor suas almas na ante-sala do esquecimento.
Antes de Vany Pontes chegar à geriatria, quatro anos atrás, Celina Costa teve outras três vizinhas de cama. Uma morreu e as outras se mudaram.
Então Vany chegou. Desde o primeiro segundo, compreendeu a vista que teria pelo resto dos dias. A porta entreaberta da sala. Foi isso que aterrorizou Vany.
Aquele mundo de velhos. Um sentado ao lado do outro. Mas sem se tocarem, sem conversarem. Exilados do outro, exilados de si mesmos.
A TV ligada o dia inteiro, mas sem perceberem. Esperando pelo café, pelo almoço, pelo jantar. Pelo lanche.
Um dia perguntaram a cada um o nome dos colegas de sofá. Nenhum sabia. Consumiam os dias um ao lado do outro, mas desconheciam o nome um do outro.
Foi isso que massacrou Vany desde o princípio. O futuro à espreita. Estagnado na mesma cena. A última cena da sua vida exatamente ali, do outro lado da porta.
A doença havia começado a penetrar no corpo de Vany quando ela tinha 40 anos. Professora de História, sempre havia desejado entender o mundo.
Então a dor começou. Pelas mãos. Depois pelas pernas. Penetrando pela espinha. A cada dia lhe comendo as horas, o fôlego. Doença de fazer louco, um dia disseram.
Os pais morreram. Sobrou Vany. Que começou a cair. Como se os ossos se liquefizessem. E então a geriatria apareceu como a estrada que não se bifurca.
Da cama, Vany começou a reparar que os velhos não chegavam prostrados. Quando chegavam, ainda havia um elo entre eles e o mundo, entre eles e a vida.
Então, as horas mortas iam lhes solapando a consciência e a vontade. Iam lhes roubando o sentimento e o sentido. Um dia se exilavam. Primeiro, morria a mente. Depois, o corpo.
A dona da geriatria ocultava a morte, inventava uma desculpa, e o velho sumia da poltrona. No dia seguinte outro tomava seu lugar. A espiral do esquecimento se repetia.
Foram tantas e tantas vezes que Vany assistiu a esse mesmo filme. Rebobinado e rebobinado repetidamente.
Celina, não. Celina escolheu a janela da rua como mundo. Ela sabe quem chega, quem sai, onde o cachorro do vizinho faz cocô, qual é o carro que estaciona em lugar proibido e sempre, invariavelmente, se intriga com a mendiga velhinha, cheia de sacolas, que sobe e desce a calçada sem horário definido.
Onde será que ela dorme? Será que ela lava as roupas? Ontem ela usava uma saia bonita.
Apenas um vidro a separá-la do mundo de lá. Do lado, na cama, ao alcance da mão, uma caixa de sapatos contém toda a sua vida. Um batom, um cartão de Natal não-enviado porque não coube no envelope, um elástico para arrumar as calcinhas, uma medalha de Nossa Senhora.
Um radinho de pilhas com o telefone de um pronto-socorro grudado. E as cartas. Celina escreve para o presidente da República, escreve para outros governantes. Para um antigo pretendente, que parou de responder. Será que morreu?
Cartas iniciadas em um caderno e jamais remetidas. Como a escrita em 24 de junho, quando fez 73 anos: “Hoje eu estou completando meus 18 anos…”
Aos 65 anos, Vany decidiu lutar contra a cena emoldurada pela porta da sala. A distância diminuindo dia a dia, o corpo artrítico arrastado para lá como que atraído por um buraco negro.
Aterrorizada, Vany pediu a uma amiga, uma artista plástica chamada Dilva Lima, que lhe ensinasse a terapia da arte. Foi quando começou.
Carregadas pela voz da professora, Vany e Celina trilharam florestas e mergulharam as pernas mortas em rios imaginários. Sentiram a textura de folhas e flores. Atravessaram tempestades e assistiram a um pôr-do-sol.
Nesses intervalos entre a dor e a porta da sala as duas escapavam, quase se tocavam. Apenas seus corpos permaneciam estirados sobre a cama. A mente ia longe.
Nessas horas, os dedos retorcidos de uma, as mãos esquecidas de outra desenhavam o movimento perdido. Aprisionavam o movimento imaginado, como se assim pudessem contê-lo. Conter algo em si mesmas de movimento e de possibilidade.
Primeiro, Vany cobriu páginas e páginas de peixes que nadavam. Depois, os peixes viraram borboletas que voavam. A evolução encerrou-se com um ser humano em posição fetal.
Um dia Vany desenhou um grande coração, vários corações em camadas, em cores diferentes, um dentro do outro. Nesse dia o coração entrou em colapso e ela teve de ser internada às pressas no hospital.
Celina desenhou a si mesma, em cinza e negro, de pé sobre pernas antigas, debaixo de uma tempestade.
Enquanto a pilha de desenhos da alma crescia ao redor da cama, a angústia foi aumentando dentro de Vany. Suas pinturas eram seu legado. Sua tentativa última de explicar o inexplicável.
Vany temeu que, quando a dor finalmente a vencesse, no dia seguinte mesmo, quando outra ocupasse a sua cama no redemoinho amnésico da geriatria, seu mundo fosse sepultado com ela.
Desfeito ao lixo, como se nunca houvesse existido uma Vany tentando buscar o mundo sem pernas que a carreguem. Nem uma Celina escapando todos os dias pela janela da rua.
Foi quando Vany inventou a exposição. Sonhou que seus desenhos poderiam viajar no lugar de suas pernas. Imaginou vendê-los e reverter a renda em benefício de uma creche de crianças exiladas. Acalentou a utopia de que seus anseios sobrevivessem a ela. Fossem livres.
Com a ajuda da amiga, as pinturas atravessaram o quarto, a soleira da porta, e alcançaram a sala. Cobriram as paredes. Mas era previsível. E aconteceu. Os velhos não perceberam a subversão do morredouro. T
Tô bem surda, tô bem cega, desculpa-se Adélia, 79 anos, que ainda cuida da irmã Josephina, de 87. Augusto desconhece onde está. Pensa que está casado com a dona da casa e que o neto da mulher é seu filho.
E Elza, 78, não consegue vislumbrar a possibilidade de virar-se de frente para a parede e enxergar. Elza é incapaz de adivinhar a possibilidade de mudar a posição da cadeira. Eu sento de costas para a parede, não vejo nada, murmura, surpreendida que falem com ela.
Vany e Celina perceberam que travavam uma luta desigual contra o exílio. Celina voltou os olhos para a janela da rua. E Vany continuou sua busca pela chave do mundo. Não desistiram. Sem pernas para correr do destino, Vany e Celina resistem. Seguem seu combate silencioso contra o naufrágio da vida.
Poucos foram ver a exposição. Não faz mal. Agora, sempre que Vany e Celina avistam o outro lado da porta, vislumbram mais do que o exílio. Chegaram lá. Com nadadeiras, cores e asas.
Ninguém percebeu, mas Vany e Celina conseguiram o que poucos conseguem. Mudaram a última cena de suas vidas.
25 de setembro de 1999
Eliane Brum, crônica “O exílio” do livro “A vida que ninguém vê”, Porto Alegre, 2012
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