O escritor uruguaio Eduardo Galeano traz na obra “O livro dos abraços” pequenas histórias que ele viveu, outras ouviu e todas marcadas pela poesia, mesmo quando o tema é árido como as guerras entre governos da América Central e rebeldes.
Em “A fronteira da arte”, um guerrilheiro /fotógrafo do movimento rebelde salvadorenho fica diante de um dilema: apertar ou não o botão da câmera, a partir do momento que ele está emocionalmente envolvido com o seu “objeto”.
Um bom questionamento sobre até onde podemos ir, sobre a interferência na vida do outro. Existe ou não existe limite para arte? Boa leitura
A Fronteira da Arte
Foi a batalha mais longa de todas as lutadas em Tuscatlán ou em qualquer outra região de El Salvador. Começou à meia-noite, quando as primeiras granadas caíram da montanha, e durou a noite toda e foi até a tarde do dia seguinte.
Os militares diziam que Cinquera era inexpugnável. Os guerrilheiros tinham atacado quatro vezes, e quatro vezes tinham fracassado. Na quinta vez, quando foi erguida a bandeira branca no mastro do quartel-general, os tiros para o alto começaram os festejos.
Julio Ama, que lutava e fotografava a guerra, andava caminhando pelas ruas. Levava seu fuzil na mão e a câmara, também carregada e pronta para ser disparada, pendurada no pescoço.
Andava Julio pelas ruas poeirentas, procurando os irmãos gêmeos. Esses gêmeos eram os únicos sobreviventes de uma aldeia exterminada pelo exército. Tinham dezesseis anos.
Gostavam de combater ao lado de Julio; e nas entre-guerras, ele os ensinava a ler e a fotografar. No turbilhão daquela batalha, Julio tinha perdido os gêmeos, e agora não os via entre os vivos ou entre os mortos.
Caminhou através do parque. Na esquina da igreja, meteu-se numa viela. E então, finalmente, encontrou-os. Um dos gêmeos estava sentado no chão, de costas contra um muro. Sobre seus joelhos jazia o outro, banhado em sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis.
Júlio se aproximou, e talvez tenha dito alguma coisa. O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu: estava lá, mas não estava. Seus olhos, que não pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem lágrimas estavam a guerra inteira e a dor inteira.
Júlio deixou o fuzil no chão e empunhou a câmara. Rodou o filme, calculou num instante a luz e a distância e colocou a imagem em foco. Os irmãos estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente recortados contra o muro recém-mordido pelas balas.
Júlio ia fazer a foto da sua vida, mas o dedo não quis. Júlio tentou, tornou a tentar, e o dedo não quis. Então baixou a câmara, sem apertar o botão, e se retirou em silêncio.
A câmara, uma Minolta, morreu em outra batalha, afogada pela chuva, um ano mais tarde.
Eduardo Galeano, “A fronteira da Arte” no livro “O Livro dos Abraços”. Editora L&PM, 2015
Foto: Wikimedia Commons
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