Nada como fazer uma comida entre amigos e familiares regada a conversas, risos, música e uma bebida preferida.
Cozinhar é sempre um ato de amor, afeto, o exercício do cuidar. É diversão, principalmente com um bom brigadeiro ou raspando a massa de bolo da tigela, quem nunca?
A cozinha é o coração de qualquer casa que aquece e expande.
Criatividade e atenção aos detalhes fazem parte da preparação de cada prato. É encarar as novas receitas como um desafio delicioso.
E como boa mineira, Adélia Prado transforma os encontros na cozinha em um ritual sagrado, em poesia pura, até mesmo a limpeza de um peixe.
Depois desta seleção de poemas, um simples café com bolo terá um outro gosto.
Boa leitura!
Louvação para uma cor
O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa, o amarelo furável.
Ao meio-dia as abelhas, o doce ferrão e o mel.
Os ovos todos e seu núcleo, o óvulo.
Este, dentro, o minúsculo.
Da negritude das vísceras cegas, amarelo e quente, o minúsculo ponto, o grão luminoso.
Distende e amacia em bátegas a pura luz de seu nome, a cor tropicordiosa.
Acende o cio, é uma flauta encantada, um oboé em Bach.
O amarelo engendra.
Bucólica Nostálgica
Ao entardecer no mato, a casa entre bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,
aparece dourada.
Dentro dela, agachados, na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,
rápidos como se fossem ao Êxodo, comem feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar, entre enxada e sono: Louvado seja Deus!
Confeito
Quero comer bolo de noiva,
puro açúcar, puro amor carnal
disfarçado de coração e sininhos:
um branco, outro cor-de-rosa,
um branco, outro cor-de-rosa.
A menina do olfato delicado
Quero comer não, mãe
(no canto do fogão o caldeirão esmaltado)
quero comer não, mãe
(arroz com feijão, macarrão grosso)
quero comer não, mãe
(sem massa de tomate)
quero comer não, mãe
(com gosto de serragem)
quero comer não, mãe
(com cheiro de carbureto)
quero comer não,
(vi um gato no caminho, fervendo de bicho)
quero comer não, mãe
(quando inaugurar a luz elétrica e o pai
consumir com o gasômetro, eu como).
Vamos ficar no escuro, mãe. Põe lamparina,
põe gasômetro não, o azul dele tem cheiro,
o cheiro entra na pele, na comida, no pensamento,
toma a forma das coisas. Quando a senhora tem
raiva sem xingar é igual a ruindade do gasômetro,
a azuleza dele. Vomito mãe. Vou comer agora não.
Vou esperar a luz elétrica.
Mater Dolorosa
Este puxa-puxa tá com gosto de coco. A senhora pôs coco, mãe?
— Que coco nada.
— Teve festa quando a senhora casou?
— Teve. Demais.
— O quê que teve então?
— Nada não, menina, casou e pronto.
— Só isso?
— Só e chega.
Uma vez fizemos piquenique, ela fez bolas de carne pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio e nós na areia.
Era domingo, ela estava sem fadiga e me respondia com doçura.
Se for só isso o céu, está perfeito.
Jejum quaresmal
O relógio bate, meu Deus, como quem sabe o que faz.
Está com fome o relógio.
Eu também, querendo comer do prato onde comem os santos
Vossa vontade esdrúxula e desumana, eu que, só em tendo feijão e batatas,
me sinto no Vosso colo.
Fantasias de privação me atrasam a santidade, pois a via que entendo é oferecer-Vos
à cruenta paixão minha colher de açúcar.
O noviço e a abstinência de preceito
Tenho dificuldade em comer folhas, mesmo as que eu próprio lavo com óculos de aumento e rios d’água.
Minha carne quer outra carne, vermelha entre dourados de gordura amarela gotejante.
Não me vale saber das excelências do verde, meu lábio treme à vista de suculências.
Aos rigores da lei — paulina ou não — minha fortaleza é a da mostarda.
Um grão.
Pomar
Os açúcares das frutas me arrombaram um jardim a meio caminho de trincar nos dentes
a doce areia, seus cristais de mel.
À vibração do que chamamos vida, onde os adjetivos todos desintegram-se, o Senhor da vida olhava-me como olham os reis as servas com quem se deitam.
Desde agora, pensei, basta dizer ‘os açúcares das frutas’ e o jardim se abrirá sob o mesmo poder da antífona sagrada:
“Ó portas, levantai vossos frontões!”
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram
ele fala coisas como ‘este foi difícil’, ‘prateou no ar dando rabanadas’ e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir.
Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.
Adélia Prado, do livro “Poesia Reunida“. Rio de Janeiro. Editora Record, 2016.
Foto: Na cozinha, Vladimir Makovsky