Esta crônica faz parte do livro “A vida que ninguém vê”, em que a jornalista Eliane Brum dá destaque à rotina das pessoas comuns com maestria e sensibilidade. Em “Cativeiro”, Eliane faz com que o leitor avalie a sua rotina e o quanto a liberdade é importante.
O Zoológico de Sapucaia do Sul abrigou um dia um macaco chamado Alemão.
Em um domingo de sol, Alemão conseguiu abrir o cadeado e escapou. Ele tinha o largo horizonte do mundo à sua espera. Tinha as árvores do bosque ao alcance de seus dedos. Tinha o vento sussurrando promessas em seus ouvidos. Alemão tinha tudo isso.
Ele passara a vida tentando abrir aquele cadeado. Quando conseguiu, virou as costas. Em vez de mergulhar na liberdade, desconhecida e sem garantias, Alemão caminhou até o restaurante lotado de visitantes. Pegou uma cerveja e ficou bebericando no balcão. Os humanos fugiram apavorados. Por que fugiram?
O macaco havia virado um homem.
O perturbador desta história real não é a semelhança entre o homem e o macaco. Tudo isso é tão velho quanto Darwin. O aterrador é que, como homem, o macaco virou as costas para a liberdade. E foi ao bar beber uma.
Um zoológico serve para muitas coisas, algumas delas edificantes. Mas um zoológico serve, principalmente, para que o homem tenha a chance de, diante da jaula do outro, certificar-se de sua liberdade. E da superioridade de sua espécie. Pode então voltar para o apartamento financiado em 15 anos satisfeito com sua vida.
Abrir as grades da porta contente com seu molho de chaves e se aboletar no sofá em frente à TV. Acorda na segunda-feira feliz para o batente. Feliz por ser homem. E por ser livre.
Há duas maneiras de se visitar um zoológico: com ou sem inocência. A primeira é a mais fácil. E a única com satisfação garantida. A outra pode ser uma jornada sombria para dentro do espelho. Sem glamour e também sem volta. Acompanhe, se quiser.
O babuíno sagrado tem um nome comum. Beto. À espreita, lá onde os olhos se misturam com a mente, há o mais perigoso tipo de fúria. A da impotência. Beto dá voltas e mais voltas na jaula, esmurra as grades. Atira comida e fezes nos visitantes.
Espanca a companheira se ela não faz tudo o que ele quer. Não admite que emita um som sem a sua permissão. Não deixa que arrede pé sem a sua complacência. Se o faz, Beto cobre-a de tapas. Se a tiram de perto dele, Beto piora. Começa a arrancar pedaços do próprio corpo. Durante as crises, Beto toma dez miligramas de Valium por dia.
Os tigres-de-bengala são reis de fantasia. Têm voz, possuem músculos, são magníficos. Mas nascidos em cativeiro, já chegaram ao mundo sem essência. São um desejo que nunca se tornará. Adivinham as selvas úmidas da Ásia, mas nem sequer reconhecem as estrelas.
Quando o sol escorrega sobre a região metropolitana, são trancafiados em furnas de pedra, claustrofóbicas. De nada servem as presas a caçadores que comem carne de cavalo abatido em frigorífico. De nada serve a sanha a quem dorme enrodilhado, exilado não do que foi, mas do que poderia ter sido. E que jamais será.
Anos atrás, um de seus bisavôs galgou a escada do tratador e espiou para além dos muros. Foi o mais longe que um deles chegou. São poderosos, os tigres-de-bengala. Mas quando chega a hora de serem confinados na caverna escura de sua escravidão, viram as costas para a Lua que aponta como promessa e marcham para a jaula. Alquebrados, submissos, como o mais vil animal da floresta.
A ursa-de-óculos é chamada de Peposa. Como se brinquedo fosse. O filho se chama Rayban, também muito engraçadinho. Quando nasceu Rayban, ela fez o que as mães costumam fazer: ensinou a ele a arte da resignação. Pegou-o pela orelha e carregou-o até as entranhas da furna na hora marcada.
Hoje, Rayban vai por sua conta. Mas, todos os dias, Rayban desafia a mãe, se esgueira e testa o cadeado. Sem jamais ter aspirado o perfume gelado da cordilheira de seus ancestrais, Rayban não adivinha o que há do outro lado. Mas intui. E por ser criança ainda não desistiu de buscar.
Pinky vive só. Os outros dois elefantes, Nely e Mohan, caíram no fosso e sucumbiram. O fosso é a prisão dos elefantes. Mohan viveu seis anos acorrentado porque o cativeiro de sua espécie ainda não estava pronto. Quando o soltaram, durou três meses. Morreu tentando alcançar a liberdade. Ou apenas um dos cães que perambulam por lá e são achados aos pedaços.
Dos três, Nely sempre foi a mais indomável. Dezenove anos atrás, matou um visitante. Um mineiro de Criciúma que comemorava a aposentadoria. Recém-liberto da solidão trevosa das minas de carvão, ele montou sobre Nely. Ela o derrubou sobre o chão e esmagou sua cabeça. Tão parecidos em sua tragédia, a elefanta e o homem.
Foram três as vezes em que Nely mergulhou no fosso. Numa delas, perdeu parte da barriga e uma mama na queda. Não desistiu. Morreu na terceira, tentando. Como nunca esquece, a elefanta Pinky assimilou o exemplo. E convenceu-se de que implacável é a punição para quem ousa dar um passo além do permitido.
A revelação dessa visita subversiva ao zoológico é que, no cativeiro, os animais se humanizam. O cárcere lhes arranca a vida, o desejo e a busca. E mais e mais vão se parecendo com os homens que os procuram na certeza de um álibi. Perigosa é a pergunta.
O que aconteceria se você encontrasse a chave do cadeado invisível de sua vida? O que aconteceria se você saltasse sobre o fosso de sua rotina? O que aconteceria se você desse o passo da elefanta? Bem, talvez seja melhor caminhar até o balcão e beber uma.
11 de setembro de 1999
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