Com relação à literatura infantil, até o século 17 as crianças eram tidas como adultos em miniatura, não havia a ideia de um mundo infantil ou uma visão especial da criança, logo não se escrevia para este público .
A mudança aconteceu em meio a Idade Moderna, quando a noção de família deixou de ser calcada em relações de parentescos mais amplas para se tornarem um núcleo unicelular preocupado com a questão da privacidade.
A partir do século 18, as crianças passam a serem vistas como seres diferentes dos adultos e com necessidades e características próprias e recebem uma educação diferenciada.
As histórias nos primórdios da literatura infantil no século 17 com Fenélon e Charles Perrault tinham a função de educar moralmente e as narrativas eram maniqueistas deixando claro que todos devem seguir o bem e descartar o mal.
No século 19, os contos que conhecemos hoje foram baseados nas histórias folclóricas dos camponeses da época e os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm publicaram dois volumes chamados “Contos maravilhosos infantis e domésticos”.
A obra era um registro da tradição oral e popular alemã que fora contada e recontada de geração em geração. De acordo com a tradutora Christine Röhrig, os informantes dos Irmãos Grimm eram mulheres em boa parte dos casos, que independente do grau de instrução, relatavam as histórias com grande entusiasmo e detalhes – afirmou Christine na apresentação da nova edição de “Contos maravilhosos infantis e domésticos” da Editora 34 em 2018.
Estas mulheres foram citadas no prefácio da primeira edição, contudo o papel delas como co-autoras destas histórias foi sendo esquecido ao longo dos anos com as novas adaptações e reedições.
Quem eram estas mulheres?
Apesar da vida modesta que tiveram, os Irmãos Grimm conseguiram chegar à Universidade de Marburgo onde começaram a se interessar pela filologia, literatura e pela história medieval alemã.
Professores, eles também eram ótimos ouvintes, pacientes e curiosos. E numa época em que a mulher não recebia o devido respeito, os Irmãos Grimm davam à elas toda a atenção, escutando e registrando tudo o que falavam.
Segundo a tradutora Christine, esta atitude demonstrava uma postura política, e eles eram muito ativos neste campo, pois participaram do movimento “Os sete de Göttinger”, que era contra a abolição da Constituição do Reino de Hanover e Jacob Grimm acabou sendo enviado para o exílio por participar deste movimento.
Estas contadoras de histórias pertenciam ao círculo de amizade dos Irmãos Grimm e de obras literárias. Dentre elas, as irmãs Hassenpflug, de origem francesa, eram tidas como uma grande fonte. Deve-se à elas as informações dadas para a criação de “Chapeuzinho Vermelho”, “O Gato de Botas”, “O Rei sapo”, “O lobo e os sete cabritinhos”, “O Alfaiate valente” e possivelmente “Branca de Neve”.
Durante estas contações de histórias, Wilhelm casou-se com uma de suas informantes: Henriette Dorothea Wild, que contou-lhe sobre a “Senhora Holle” e outras tantas menos conhecidas.
Dentre todas, Dorothea Viehmann foi a que mais forneceu histórias para eles, foram mais de 40, tornando-se a fonte mais importante. Ela narrou : “Os três fios de cabelo do Diabo”, “Os doze irmãos”, “A esperta filha do camponês” e a “Pastora de gansos”.
Quem conta um conto, aumenta um ponto
Em muitos dos contos as mulheres se mostram inteligentes, astutas, heroínas destemidas. São elas que proporcionam um final feliz ou encontram uma saída para as situações difíceis. Existe uma corrente de estudo que acha os contos terem sido escritos para as meninas.
Temas como: gravidez é retratado em “Rapunzel”; puberdade em “Mil peles” e “Bela Adormecida”; rivalidade entre mães e filhas em “Branca de Neve” e liberdade em “Os sapatos gastos de tanto dançar”.
Por outro lado, há quem diga que os Irmãos Grimm não foram fiéis às narrativas. Ao longo das edições Wilhelm Grimm foi modificando um pouco as histórias, afinal na tradição oral vale a máxima: “quem conta um conto aumenta um ponto” e a outra hipótese seria que ele queria adequá-las melhor ao público infantil aumentando o seu alcance editorial.
Especula-se também que Wilhelm não gostava do papel das mães nas histórias na primeira versão do “Contos maravilhos infantis e domésticos” de 1812. Ele transformou de uma vez só 7 mães em madrastas.
De edição em edição, algumas curiosidades que estavam nas primeiras publicações foram modificadas, adaptadas, suavizadas e censuradas. E ao comparar os desenhos animados da Disney baseados nestas histórias descobre-se que estes estão um tanto longe do original. Como exemplo, na história de “Branca de Neve”, é a mãe que manda matá-la e seu castigo ao final é cruel. Ela é obrigada a dançar calçando ferro em brasa e só podia para de dançar quando estivesse morta.
No conto “O Rei sapo ou Henrique de Ferro”, o bicho não é beijado e sim atirado contra a parede e cai estatelado na cama da princesa na forma humana. Em “Cinderela” não existe fada madrinha, são os pombos e uma árvore que realizam o desejo dela de ir ao baile.
Quanto ao sapatinho de cristal, a mãe dá para as irmãs uma faca afiada para que cortassem os dedos e calcanhares para que pudessem calçá-lo.
“Contos maravilhosos infantis e domésticos” é um clássico que mesmo com todas as modificações sofridas ainda é uma fonte inesgotável de fantasia, ensina a contar histórias e também a gostar de histórias.
Com informações do Nexo Jornal.